Autor: Cristal Muniz

  • Cuca, uma história de família

    Cuca, uma história de família

    “Como explicar algo que é tão familiar pra você? Algo que você tá tão acostumado, que faz parte de você de certa maneira, mas que a palavra que carrega aquele signo já diz tudo, não precisa de explicação?”

    Foi o que pensei enquanto cortava batatas inglesas recém cozidas em fatias finas para terminar uma maionese caseira pra um churrasco com amigos, repetindo uma cena que vivi várias vezes, quando rondava minha vó no almoço de domingo. Enquanto batia os ovos com óleo no liquidificador e dava tudo errado porque a receita que existe e extraí da minha mãe é uma anti-receita, pensei nessa herança que tenho comigo. Não tenho a da cuca, mas já chegamos nela.

    Várias bergamotas prontas pra colher.

    Na verdade, eu tenho uma receita da maionese que eu precisaria fazer uma quantidade que serve pra uma família moradora do interior de Santa Catarina com sete filhos e dezenas de netos pra alimentar. Como nunca é o caso, já que sou uma neta que mora sozinha, sempre tento fazer menos quantidade, em um liquidificador enorme e dá um pouco errado. Já fiz outras vezes e sempre dá certo, mesmo dando errado, o que pode comprovar minha herança culinária ou que a receita é bastante fácil. Ainda não tenho certeza de qual dos dois.

    De qualquer maneira, enquanto fazia aquilo e sentia o cheiro de ovo cozido misturado com o de batata cozida e sentia aquela textura molhada e quente na mão, pensei na cuca da minha vó.

    *

    Céu azul sem nuvem, mato, luz inclinada: São Carlos é muito isso pra mim.

    Cuca é o nome pra uma espécie de bolo que existe na região sul do Brasil que foi colonizada por alemães. Mas, até muito tempo, pra mim “cuca” era apenas uma coisa: a cuca da minha vó. Nenhuma cuca é igual a dela. A cuca mais próxima em gosto que cheguei, foi uma que fiz uma sem ser a receita dela, sem ser o método dela, mas abri todas as uvas pra tirar as sementes como ela fazia e fiz a farofinha do jeito que ela disse pra eu fazer. Inclusive, queria achar essa receita, mas tava num bate-papo com um amigo no facebook, veja bem.

    Morar em uma cidade minúscula de interior te dá poucos ou quase nenhum referencial pra além daquilo, porque a cidade costuma ser ensimesmada tanto quanto cada casa também o é.

    Minha casa era regida pela movimentação da cozinha que minha vó comandava, executava e mantinha todos os dias ativa. Quase tudo o que a gente comia era feito e até colhido ali, na minha casa. Por isso pão sempre foi sinônimo de três opções: pão branco, pão integral e pão de milho. Assados no forno a lenha. Feitos em grande quantidade. Do mesmo tamanho, sempre. Com o mesmo gosto, sempre. Laticínios eram todos derivados do leite das vacas da chácara – que tinham nomes que minha irmã tinha dado junto com meu vô. Quer dizer: era uma cozinha ensimesmadíssima.

    Minha mãe fazendo uma sobremesa.

    Acho difícil explicar uma cidade de interior como São Carlos pra quem nunca esteve no interior, em especial esse interior do oeste do Sul do Brasil. É preciso dizer que a cidade é menor que um pedaço de um bairro de uma cidade grande. Que o asfalto acaba rápido se você se afasta do centro da cidade, porque a estrada de chão começa levando pras propriedades rurais. O centro, onde tem tudo, tem um raio pequeníssimo. Tem uns dois mercados. Umas duas praças. Uma igreja. É tudo muito unitário. Quando eu morava lá eram 5 mil habitantes, hoje são 10 mil.

    *

    Quando pensei o nome desse blog e que antes era só uma newsletter, que de certa maneira foi o nome de um outro projeto, tive ajuda de uma amiga que pontuou o duplo sentido: cuca fresca é uma expressão metafórica do português, mas também é literalmente a cuca fresca. Uma amiga do Maranhão, sem entender totalmente o conceito de cuca pra mim – uma vez que era um conceito novo para ela –, me disse que eu deveria começar explicando o que diabos era uma cuca.

    Mas como explicar algo que é tão familiar pra você? Voltamos pro começo.

    A cuca da minha vó é uma espécie de pão doce recheado. A massa é quase uma massa de pão, então não tem aquele aspecto de bolo simples, é farinha e fermento biológico, deixa crescer, não tem quilos de açúcar ou muitos ovos. Minha vó abre a massa, polvilha ou espalha o recheio e enrola a massa em si, formando uma espécie de rocambole com 3 ou 4 voltas. Essa massa, mais baixinha, vai pra uma forma grande, então a cuca fica muito horizontal e pouco alta. Por cima, uma farofa de manteiga gelada, farinha e açúcar bem misturadas cobre toda a massa em uma camada generosa. Assadas no forno a lenha, que já tinha sido preparado horas antes e, provavelmente, já tinha assado uma fornada de pães.

    Lá em casa sempre tiveram os sabores: framboesa, feito com um xarope concentrado rosa choque, o favorito dos netos e crianças em geral; chocolate, feito com nescau que também é um dos que mais faz sucesso; canela, que os mais velhos costumam preferir; sem recheio que sempre é só uma cuca entre dezenas, quase como uma cota que minha vó faz pra si; e mais recentemente começou a ter de uva com a fruta mesmo (minha preferida).

    Não sei dizer quando minha vó fazia cuca, mas não era o tempo inteiro. Acho que seguiam alguns feriados e festas que concentram a família, antes de receber visitas de algum tio que mora longe. Eu mesma, depois que passei a ser visita, era muitas vezes recebida com cucas fresquinhas.

    Minha vó dando tchau ao lado da mudinha de abacateiro no sítio do meu tio.

    Já existia um outro referencial de cuca na minha vida, que era a cuca de banana da mãe da Júlia, uma prima minha pelo outro lado da família, do meu pai. Essa cuca de banana era daqui do litoral, de Florianópolis, era quase como se fosse uma falsa cuca. Tanto que pensando agora, fiquei na dúvida se era mesmo uma cuca ou se era um bolo de banana que eu gostava tanto.

    De qualquer maneira, foi só quando vim morar de volta em Floripa que percebi que nenhuma cuca era parecida com a da minha vó. Já contei sobre ela pra outros amigos que tem essa referência dentro de casa, de outras cidades de outros interiores de SC, mas minha experiência sempre parece mais antiga, de décadas passadas, talvez porque eu morava com a vó mesmo.

    O nome cuca pra esse bolinho/pão doce vem da palavra alemã kuchen (lê-se kuRRen com o R um pouco parecido com o RR de carro) que significa bolo. Minha vó fala alemão, é sua língua materna e, em casa, era o que ela falava com meu vô. A gente nunca aprendeu a falar, mas ficava com curiosidade de aprender o nome das comidas.

    Rosas cuidadas e colhidas pela minha vó, num arranjo de centro de mesa.

    Meu ponto com tudo isso é pra dizer que minha vó chamava a cuca de uma coisa que agora eu sei como escrever, que é “streuselkuchen”. Se lê mais ou menos “xtróizelkuRRen”. Quando tentei investigar que palavra era essa ou o que isso significava, ninguém conhecia ou entendia mas aí a gente tem que lembrar que eu não falo alemão e minha vó não sabe ler e escrever em alemão. Foi só quando eu tava no aeroporto de Frankfurt pra uma conexão que bati o olho em um pãozinho com cara de cuca e o nome que parecia o “xtróizen” que entendi o que era. E era o mesmo gosto, inclusive era feito com framboesa – a fruta, não o xarope.

    Fui pesquisar isso no google e finalmente achei uma resposta, enquanto escrevia esse texto, nesse verbete da wikipedia sobre streuselkuchen. É essa a cuca da minha vó. Nem eu tava louca de dizer que ela chamava assim, nem ela tava inventando uma palavra. Essa confirmação de que a gente tava certa foi importante pra mim, uma mulher que odeia estar errada.

    *

    Pensei nisso tudo enquanto cortava as batatas pra maionese e pensava na repetição: minha vó fazia, minha mãe faz, eu faço.

    Pra mim, importa muito repetir essas receitas e manter essa herança comigo. Minha vida gira em torno da comida desde sempre, seja porque quando criança eu ficava vendo minha vó cozinhando tudo isso, seja porque entendo quanta coisa a comida é capaz de dizer. Repetir as receitas é uma forma de honrar o preparo de todas as vezes que comi e passar pra frente todo esse cuidado que vinha em pães doces, molho de maionese, sagu com creme de chocolate, risoto de frango, a batata desmanchando cozida com o frango, a batata fininha e frita, o feijão preto feito na panela de ferro, a lasanha de massa caseira, o macarrão feito na máquina lá fora, a couve com farinha de milho, o waffle crocante no fogão a lenha, o pão de milho do forno a lenha, o pé de moleque com melado de Pratas, o pão com nata e geleia.

    Foi por isso inclusive que fui fazer nutrição, pra mim comida é tudo.

    Esse texto foi escrito tem mais de um ano e ficou aqui guardado sem eu saber muito bem como colocar pra fora. Fiz uma tentativa, escrevendo um final dizendo que eu ia colar grau em nutrição (isso foi em fevereiro desse ano). Não postei. Depois, já nutricionista formada, revisitei ele ali por junho e fiquei na dúvida de como postar. Ensaiei bastante e acho que precisei organizar estantes inteiras de coisas aqui dentro de mim pra poder jogar isso no mundo. Fiz até um blog novo (esse aqui).

    Sempre quis muito ser diferente. De que? De tudo. Me distanciar era meu recurso de me identificar. Nos últimos tempos tenho olhado pro que é semelhante em mim e achado bonitas as repetições que a gente faz – especialmente quando a gente escolheu elas pra serem repetidas. Repetir as receitas da família faz a gente mais próximo dessas coisas.

  • Fugindo de ruído

    Vivian Meier. October 29, 1953. New York, NY

    Faz uns meses que comecei a pensar que a solução era criar um novo blog. A solução pra que? Pra eu conseguir falar as coisas que eu quero no formato que eu quero, sem precisar pensar em post pro instagram, sem precisar da lógica da newsletter. Precisava de um site porque precisava falar.

    Mas não só isso, eu queria estar em um lugar sem ruído. As redes sociais são todas redes de publicidade hoje em dia, redes pra comprar coisas ou subjetividades (eu falei disso num texto tem tanto tempo, meudeus). Queria dizer coisas num espaço que desse paz para ler. Tive essa confirmação um dia enquanto lia algum texto no site da Revista FAPESP: uma delícia.

    O zunido da geladeira, as crianças brincando, o cachorro latindo, o bebê chorando, as vizinhas brigando, a fonte de água borbulhando: todos esses ruídos preenchem o meu entorno, mas quando estou ouvindo tudo isso eu sinto que estou em silêncio – porque tem espaço pra pensar.

    De qualquer maneira, esse espaço é isso. Tem coisas que quero falar que não cabem no UmaVidaSemLixo. Tem coisas que são longas demais pra uma newsletter. Quero menos depender de redes sociais pra poder botar coisas no mundo. Quero mais sentar, escrever e depois jogar pras redes. Enfim, tô aqui pensando.

    Até logo. 🙂